quinta-feira, 28 de maio de 2009

Secretários do Rio contestam grupos que distribuem sopas

Secretários do Rio contestam grupos que distribuem sopas

24 de maio de 2009 • 04h27 • atualizado às 04h27

Faltava pouco para os ponteiros do relógio da Central do Brasil se encontrarem à meia-noite. Moradores de rua esperavam um dos vários grupos que distribuem sopa na cidade - no caso da avenida Presidente Vargas, filósofos do Grupo Cultural Nova Acrópole. A caridade, porém, preocupa a prefeitura do Rio de Janeiro, que enxerga no gesto um estímulo à permanência da população nas ruas.

"De fato, as pessoas que distribuem comida a moradores de rua acabam contribuindo para dificultar o trabalho de acolhimento que estamos desenvolvendo juntamente com a Secretaria Municipal de Assistência Social", afirmou Rodrigo Bethlem, secretário municipal de Ordem Pública. "Em operações, muitos se recusam a seguir para os abrigos porque não querem perder a hora do sopão", diz.

Ineficácia municipalO filósofo Vitor Barrozo, 40 anos, não acredita que o ato de generosidade estimule a mendicância. Para ele, trata-se de um exercício, no qual os praticantes colocam o melhor se si sem reserva. Nos encontros, o grupo conversa com moradores e dá conselhos.

"Eu acredito na frase de Betinho 'Quem tem fome tem pressa'. Se a prefeitura tivesse eficácia, eles não estariam aqui. Isso não é um incentivo, mas a sociedade não pode ficar omissa diante dessas situações", defende Barrozo.

O secretário municipal de Assistência Social, Fernando William, cita um mapeamento que indica a maior concentração de moradores em regiões onde grupos distribuem refeições. Dizendo-se "humanista", ele considera essas ações "um desserviço bem intencionado".

"Dias desses, minha equipe e eu tínhamos convencido vários moradores de rua a irem para o abrigo. Eles estavam todos dentro da Kombi, quando chegou um grupo distribuindo sopa e todos saíram para pegar", conta William.

A professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, Rosana Morgado, não acredita que a doação de refeições fomente a permanência na rua. Para ela, o pensamento da prefeitura é um equívoco e impedir distribuição de alimento é atacar processos de solidariedade.

A acadêmica cita que, nos últimos dez anos, apenas uma pesquisa foi feita em nível nacional para traçar o perfil do morador de rua. Rosana julga a falta de dados como complicador para a execução de políticas públicas eficazes. Para ela, não é a oferta de comida a responsável pelo insucesso das ações municipais. O recolhimento da população de rua executado pela atual gestão é avaliado como um retrocesso pela pesquisadora.

"Se não forem feitos programas de forma integrada, as ações municipais são como enxugar gelo. A população não está na rua por causa de um prato de comida. Ela está ali porque encontrou naquele espaço possibilidade de sobrevivência. Na rua, fica exposta a todo tipo de violência e sofre discriminação", argumenta Rosana, que defende políticas integradas de habitação, saúde, emprego e renda.

Os secretários Rodrigo Bethlem e Fernando William pedem que as organizações de assistência continuem a desempenhar o serviço, mas através da prefeitura.

"Nós queremos que as pessoas continuem contribuindo para assistir os moradores de rua, mas que o façam de forma orgânica. Ou seja: que ajudem, por exemplo, a melhorar as condições dos abrigos, sejam eles oficiais ou não", pede Bethlem.

"Quem quiser ajudar pode ir a um abrigo nosso. O que eles mais precisam é de cuidados humanos, afeto, respeito e carinho. Qualquer um dos nossos abrigos apresenta condições melhores que as situações da rua. Lá, eles vão ter uma disciplina, alimentação, limpeza, que são cuidados básicos", argumenta o secretário.

Desjejum às 23hManoel Carvalho Pinto, 60 anos, mora na rua há seis. Protegido da chuva pela marquise, diz que vai ter sua primeira refeição de uma quarta-feira às 23h.

"A gente vive na rua e não tem certeza de nada, isso daqui (a sopa) caiu do céu", agradece Manoel, que por causa de um derrame tem problemas na perna esquerda.

Porém, mesmo com todas as dificuldades enfrentadas por quem "vive ao léu", ele prefere as incertezas da rua.

"Eu, particularmente, na minha opinião, acho mais fácil viver aqui. A gente trabalha e perde o emprego ou mora longe e tem que acordar cedo e chega tarde em casa. É melhor ficar na rua mesmo. Eu durmo aqui na Presidente Vargas, porque sempre tem alguém que me dá comida", conta o carioca.

Em uma coluna à frente de Manoel, dona Maria de Fátima Resende, 58 anos, encolhe-se no cobertor curto. Ela sabe que a noite vai ser longa e com agilidade bebe, sem filosofar, a sopa que ganhou há pouco do Grupo Nova Acrópole.

Com a lucidez cambaleante de quem mora há 22 anos na rua, revela a fragilidade de quem ainda não se acostumou com a rigidez do passeio público.

"Já fui para o abrigo de Bonsucesso, fiquei um mês. Lá, eles colocam a gente junto com bandidos, ladrões. Eu queria comer duas vezes e não me deixaram. Preferi voltar para a rua, é mais seguro. Mas não gosto daqui também. Queria ter minha casa, sei costurar, posso trabalhar, tenho muita força ainda - desabafa Maria, que ainda diz ter um sonho: - eu queria mesmo era cantar na televisão. Eu podia ser a Hebe.

Na Praça da Cruz Vermelha, no centro, um grupo de aproximadamente 20 moradores de rua esperavam a sopa. A chuva fina que caía talvez impedisse que um grupo entregasse refeições naquela noite. Os estômagos protestavam.

"A alegria do nosso dia é dormir de barriga cheia, vem ONG, evangélicos, padre, espíritas e dão cachorro-quente, quentinha, sopa, canjica. Porque, se depender da prefeitura, a gente não tem nada, não existe. Eles só querem nos recolher", reclama Carlos, que já foi garçom e perdeu as contas de quantas vezes passou pelos abrigos, de onde costuma ser expulso por não conseguir largar o vício da bebida alcoólica.
JB Online

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